Resumo: O julgamento no STF sobre o uso de dinheiro público para promover comemorações do golpe de 1964 foi interrompido por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli. O relator não viu irregularidades, mas outros ministros votaram contra. O debate envolve a Constituição e a história da ditadura militar no Brasil.
Cedant arma togae
Um pedido de vista do ministro Dias Toffoli interrompeu, nesta quarta-feira (15/5), o julgamento no qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal debate se é possível usar recursos públicos para promover comemorações do golpe de 1964, que instaurou uma ditadura militar com apoio civil no país.
A análise virtual havia começado na última sexta-feira (10/5), com término previsto para a próxima sexta-feira (17/5).
O caso diz respeito à “Ordem do dia de 31 de março de 1964”, uma mensagem publicada em 2020 pelo Ministério da Defesa, comemorando os 56 anos do golpe. Iniciada em 2019, a prática de comemorar o regime autoritário se repetiu novamente até 2022, ao longo do governo de Jair Bolsonaro.
Antes do pedido de vista, cinco ministros haviam se manifestado. O relator do caso, Kassio Nunes Marques, não viu irregularidades na comemoração e negou a existência de repercussão geral na questão.
Já outros quatro magistrados reconheceram a repercussão geral e votaram contra quaisquer comemorações do golpe.
Contexto
A primeira instância inicialmente determinou a retirada da mensagem do site do Ministério da Defesa e proibiu a publicação de qualquer anúncio comemorativo relativo ao golpe.
Mas a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região reformou a sentença, alegando que a mensagem apenas reproduzia “a visão dos comandantes das Forças Armadas”. Para os desembargadores, “a Constituição não desautoriza as diferentes versões sobre fatos históricos”.
A deputada federal Natália Bonavides (PT-RN) acionou o STF para questionar a decisão do TRF-5, mas Kassio Nunes Marques rejeitou o recurso em outubro do último ano. Na ocasião, ele também negou o reconhecimento de repercussão geral sobre a questão.
Reviravoltas
Já em dezembro, o caso foi submetido ao Plenário. Kassio manteve os fundamentos de sua decisão. De acordo com ele, a questão “não extrapola os limites da causa e o interesse subjetivo das partes envolvidas”, ou seja, seu efeito é “estrito ao caso concreto”.
O ministro Cristiano Zanin acompanhou o relator. Na sequência, Gilmar Mendes pediu vista e interrompeu a análise.
Na última sexta, o julgamento foi retomado com o voto de Gilmar, que abriu divergência. Segundo ele, a questão tem repercussão geral e a sentença de primeiro grau deve ser restabelecida.
O decano foi acompanhado por Zanin (que reajustou seu voto e passou a concordar com Gilmar), Flávio Dino e Alexandre de Moraes.
Tanques e togas
Gilmar propôs a seguinte tese: “A utilização, por qualquer ente estatal, de recursos públicos para promover comemorações alusivas ao golpe de 1964 atenta contra a Constituição e consiste em ato lesivo ao patrimônio imaterial da União”.
O ministro apontou em seu voto que a questão de saber “se cabe ao poder público realizar atos comemorativos do golpe de 1964 ostenta inequívoca relevância social, jurídica e política, devendo ser reconhecida a repercussão geral na espécie”.
No mérito, o decano argumentou que “a ordem democrática instituída em 1988 não admite o enaltecimento de golpes militares e iniciativas de subversão ilegítima da ordem”.
Ele contextualizou as manifestações dentro de um projeto de retomada do protagonismo político das Forças Armadas, movimento feito fora das previsões constitucionais.
Gilmar lembrou que, mesmo antes da comemoração publicada no site do Ministério da Defesa, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, já tinha se sentido à vontade para tentar intimidar os ministros do STF em uma publicação no Twitter.
Naquela ocasião, o ministro Celso de Mello (já aposentado) alertava contra “movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma”.
Liberdade de expressão
Ainda que as pessoas tenham a liberdade de formar juízo próprio acerca de fatos históricos, Gilmar destacou que “agente algum, quando investido de função pública, está autorizado a se valer da estrutura estatal para propagar comunicação laudatória a golpe de estado ou iniciativas de subversão da ordem democrática”.
Ele ainda indicou que essa retomada de protagonismo das Forças Armadas, em um cenário de hostilização contra as instituições políticas legítimas do país, foi o que possibilizou os episódios de terrorismo do 8 de janeiro de 2023, na sede dos Três Poderes em Brasília.
Gilmar refletiu, em seu voto, que a comunicação oficial do governo, ao caracterizar o golpe como “um marco para a democracia brasileira”, abandonou qualquer intuito informativo e veiculou conteúdo “inegavelmente inverídico”.
Postado Originalmente em: www.conjur.com.br